Aurora tinha 15
anos quando, em um sono profundo, foi estuprada por um homem e nove meses
depois teve dois filhos gêmeos.
“O
rei, acreditando que ela dormia, chamou-a. Mas, como ela não voltava a si por
mais que fizesse e gritasse, e, ao mesmo tempo, tendo ficado excitado por
aquela beleza, carregou-a para um leito e colheu dela os frutos do amor, e,
deixando-a estendida, voltou ao seu reino, onde por um longo tempo não se
recordou mais daquele assunto”.
A moça, então,
foi levada pelo indivíduo para morar com ele, até que descobre que o pai de
seus filhos e seu estuprador era casado. A sua esposa, depois de se indignar
com o fato de ter que conviver com a amante e seus filhos em sua própria casa,
acaba sendo morta pelo próprio marido, e, finalmente, Aurora consegue casar com o
seu tão amado rei.
Parece uma
história saída de uma notícia de um veículo de imprensa sensacionalista, mas,
na verdade, é o conto A Bela Adormecida, escrito originalmente pelo escritor francês
Charles Perrault, publicado em 1636.
Ilustração de A Bela Adormecida do Bosque / Foto: Reprodução
A história de
Aurora, amenizada e então adaptada ao cinema pela Disney em 1959, é bastante
parecida com outra história de ficção. De Aurora vamos para Annie Cameron, de
1636 para 2010, e da França para Chicago, nos Estados Unidos. No filme Confiar, Annie tem 14 anos
e ganha de presente de aniversário um MacBook – e, junto com ele, o acesso a
todas as redes sociais disponíveis na internet. Um dia, a menina resolve entrar
em uma sala de bate-papo, onde acaba, como Aurora, conhecendo o seu prínpe:
Charlie. Annie e Charlie iniciam um relacionamento virtual e mesmo após as
pequenas mentiras que a jovem vai descobrindo sobre a sua nova paixão (como a
idade, por exemplo), as conversam não acabam e finalmente chega o momento em
que Annie e Charlie vão se conhecer pessoalmente.
E é aí que vem a
grande surpresa: a jovem descobre que, na verdade, o seu grande amor é um homem
de 40 anos, e, como Aurora, cai em um sono profundo de um século. Adormece
porque, de tão decepcionada, traída, e humilhada, Annie entra em um estado de
negação tão irreprimível que passa achar que não foi estuprada, mesmo sabendo
que ser obrigada a fazer sexo com alguém que não queira é estupro. Adormece
porque não consegue lidar com o próprio medo de ter se envolvido e acreditado
em alguém que durante todo o tempo mentiu e manipulou todas as informações
possíveis – e acreditou em tudo. Adormece porque sente vergonha. Adormece
porque já havia contado a todos os amigos como um jovem universitário de 19
anos estava apaixonado por ela, uma menina que mora em uma região suburbana de
Chicago e tem apenas 14 anos de idade. Adormece porque não consegue lidar com
toda a pressão psicológica que um estupro pode causar a uma mulher, e também
porque não sabe conviver com o desespero de seus pais. Annie, como Aurora,
adormeceu em uma Síndrome de Estocolmo (Transtorno em que a vítima cria uma
relação de dependência com seu agressor) e não percebeu que dormiu. Annie é a
Bela Adormecida do século XXI. Annie é a Bela Adormecida que dormiu em uma
conversa de bate-papo e não conseguiu acordar depois de uma cena de estupro.
Annie e Aurora são uma só.
A história
continua quando uma amiga da protagonista descobre o acontecido e, indo de
encontro a vontade de Annie, conta o caso aos pais da menina até que o caso vai
parar na FBI. Durante a investigação, é descoberto que o estuprador de Annie já
havia cometido o mesmo crime diversas vezes, todos com meninas com o mesmo
biotipo e idade aproximada, e, além desses elementos, todas as ações tinham um
fator essencial em comum: começaram na internet.
Trailer oficial de Confiar
Os crimes na
internet (ou cibercrimes) foram ganhando
cada vez mais espaço com o aumento do acesso das pessoas às redes sociais. Por
conta da rapidez da propagação de conteúdos e com a possibilidade escrever
qualquer coisa sobre qualquer assunto e disponibilizar para qualquer um que
tenha o interesse de ler, a exposição torna o acesso a informações e dados bem
mais fácil. A situação piora um pouco com a possibilidade de compartilhar fotos
pessoais e o local onde mora, família, e momentos íntimos.
Mas, também não
devemos enxergar a situação de maneira apocalíptica e nem ter medo de usar a
rede ou compartilhar ideias e imagens com os amigos, mas, é importante se ter a
noção de que, na verdade, não existem crimes virtuais e crimes “reais”: o que
há são crimes que começam a partir de informações coletadas na internet. Essa é
a grande diferença de Aurora e Annie – a segunda foi descoberta pelo seu
agressor a partir do meio virtual.
Juntamente com o
crescimento dos crimes virtuais, surgem também as leis que os condenam e os
sites e números que os denunciam. O Safernet, por exemplo, é um site em que,
além de poder procurar auxílio psicológico, uma pessoa pode denunciar qualquer
tipo de crime que esteja relacionado com a internet. O delegado Guilherme Iusten, da Seção de
Combate a Roubos a Bancos (Serb) que trata também de crimes contra direitos
autorais e crimes de internet comentou em entrevista ao G1 que “não temos
números exatos e oficiais que comprovam o crescimento das denúncias, mas como estamos
na ativa diariamente, podemos afirmar que tem aumentando significativamente
quando comparado ao ano passado. As pessoas estão mais informadas e procurando
os direitos, atribuo isso também à internet”.
Hoje, crimes que
começam na internet já são considerados crimes federais. Em 2012 foi criada a Lei Carolina Dieckmann, que marcou o início das penalidades para quem comete crimes
cibernéticos no Brasil, em referência a atriz que teve fotos íntimas
descobertas e espalhadas na rede. A nova lei entende como crimes virtuais os
casos em que há invasão de computadores, celulares ou tablets, mesmo sem
conexão com a internet, com o objetivo de destruir, obter ou adulterar dados.
Carolina Dieckmann, atriz brasileira que deu nome a lei que pune crimes virtuais / Foto: Reprodução
Os crimes virtuais que
geralmente ganham mais notoriedade são aqueles que envolvem pessoas famosas em
momentos íntimos. Neste ano ficou famoso o caso da atriz estadunidense Jennifer Lawrence, que teve fotos íntimas “vazadas” para a internet mais de uma vez. A
atriz chegou a declarar que quem compartilhou as imagens estão também cometendo
um crime sexual e virtual – o que não deixa de ser verdade.
Essa obsessão geral em ver e
compartilhar imagens de celebridades em situações de constrangimento, além de
ser milenar – afinal, a fofoca nasceu com o ser humano – pode ser explicada
pela ideia de Sociedade da Vigilância: em que, a partir dos aparatos
tecnológicos e da facilidade de comunicação, eu vigio você, você me vigia, e
nós vigiamos todos. Na Sociedade do Espetáculo, termo e conceito propostos pelo
filósofo francês Guy Debord, em que a imagem é a grande rainha e nós somos seus
mais fiéis súditos, quem não se divulga chega a ser visto como um ser sem vida
social, sem amigos, e, por fim, basicamente inexistente. O Espetáculo exige a
espetacularização de fatos, e até comer pode se tornar uma atração. Mas,
novamente, é importante reiterar que não se deve levar isso como algo negativo
ou pensar que antes das tecnologias os seres humanos eram melhores: o que
existe hoje é apenas uma nova forma de vida, nem melhor nem pior, e sim
diferente. Diferente no aspecto de que, atualmente, a espetacularização se tornou
mais fácil com as tecnologias de comunicação, e, antigamente, espalhar notícias
próprias era um pouco mais difícil – apenas por carta ou pela oralidade.
Provavelmente, se nossos avós tivessem tido acesso a todos esses aparatos, hoje
nos entenderiam melhor e julgariam menos.
Os reality shows são uma das maiores formas de expressão da Sociedade
do Espetáculo: há realities de
culinária, música e moda, mas os mais famosos e adorados pela população são
aqueles que envolvem celebridades, como o Big Brother, A Fazenda, Casa dos Artistas, entre outros, só para citar os mais assistidos no Brasil.
Pedro Bial, jornalista brasileiro e apresentador do reality Big Brother Brasil, o mais assistido no país / Foto: Reprodução
Uma serie de ficção recente
trouxe esse tema, mas levado ao extremo: a trilogia de livros (que estão sendo adaptados
para o cinema) Jogos Vorazes narra um mundo distópico em que uma Capital,
poderosa e rica, tem o domínio e exploração sobre 12 distritos sem autonomia.
Em Jogos Vorazes, o dito 4º poder é, na verdade, o 1º, já que a maior força do
governo da Capital está na mídia e nas imagens. E, para controlar e governar
essa sociedade excessivamente imagética, os governantes criaram os Jogos
Vorazes, um reality show em que
jovens com idades de 12 a 18 anos são mandados para a arena, que funciona
como o estúdio do programa, onde precisam lutar até que todos morram e apenas o
vencedor sobreviva. Só um fica, só um sobrevive, e só um ganha os Jogos
Vorazes, sem direito a prêmios de segundo e terceiro lugar. A filosofia de vida
da Sociedade do Espetáculo é tão visível na história ao ponto em que, mesmo
sabendo que estão condenados à morte, os jovens que participam dos jogos fazem
questão de estar sempre bem vestidos, arrumados e fotogênicos: e, como no Big
Brother Brasil, os bonitinhos e atraentes são sempre mais queridos, pelo menos
inicialmente – e o regojizo da sociedade em ver aqueles bonequinhos-de-luxo se
assassinando até o fim (das vidas de cada um) mantém a Capital feliz, empolgada
e abastecida. O fim da vida de várias pessoas é o que alimenta a vida de muitas
outras. E isso não está tão distante da nossa realidade atual.
Trailer oficial de Jogos Vorazes
Afinal de contas, de que viveriam
os jornais sensacionalistas, que exploram a morte, violência, e miséria de
populações carentes, e, por isso, conseguem um público e audiência sempre
estarrecedoramente grandes? Qual é a grande diferença entre os reality shows atuais e os Jogos Vorazes?
Geralmente, quanto mais conflitos acontecem entre os participantes dos
programas, maior é a sua audiência. O interesse humano pelas tragédias, na
verdade, vem da antiguidade, e um grande exemplo é o Coliseu e as suas épicas batalhas.
A Sociedade do Espetáculo foi ontem, é agora, e será amanhã. Viver no espetáculo
é quase um instinto humano.
Aurora, 1636, e principalmente
Annie, 2010, foram influenciadas por esse modo de vida: a primeira foi viver com o seu
algoz para esconder as marcas do estupro e por não ser socialmente aceita na
sociedade (do Espetáculo) por ser mãe solteira de filhos gêmeos, e a segunda se
afastou de todo o seu círculo social por ter sido julgada e discriminada por
ter se envolvido em um caso de estupro. A cada dia, novas Auroras e Annies
surgem em algum lugar do mundo: sex tapes,
fotos íntimas e conteúdos são espalhados por aí e o mundo se retroalimenta. Nós
sobrevivemos.
O espetáculo é preciso,
e, mesmo sem notar, todos fazemos parte do show. Pode-se ficar na plateia e
comentar, fotografar e compartilhar imagens do acontecimento. Um passo a mais,
e se pode chegar ao palco.
*Texto: Bruna Castelo Branco
Revisão: Grupo 01
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