Thursday, November 27, 2014

A vida é o espetáculo mais triste da terra

Aurora tinha 15 anos quando, em um sono profundo, foi estuprada por um homem e nove meses depois teve dois filhos gêmeos.

O rei, acreditando que ela dormia, chamou-a. Mas, como ela não voltava a si por mais que fizesse e gritasse, e, ao mesmo tempo, tendo ficado excitado por aquela beleza, carregou-a para um leito e colheu dela os frutos do amor, e, deixando-a estendida, voltou ao seu reino, onde por um longo tempo não se recordou mais daquele assunto”.

A moça, então, foi levada pelo indivíduo para morar com ele, até que descobre que o pai de seus filhos e seu estuprador era casado. A sua esposa, depois de se indignar com o fato de ter que conviver com a amante e seus filhos em sua própria casa, acaba sendo morta pelo próprio marido, e, finalmente, Aurora consegue casar com o seu tão amado rei.

Parece uma história saída de uma notícia de um veículo de imprensa sensacionalista, mas, na verdade, é o conto A Bela Adormecida, escrito originalmente pelo escritor francês Charles Perrault, publicado em 1636.

Ilustração de A Bela Adormecida do Bosque / Foto: Reprodução

A história de Aurora, amenizada e então adaptada ao cinema pela Disney em 1959, é bastante parecida com outra história de ficção. De Aurora vamos para Annie Cameron, de 1636 para 2010, e da França para Chicago, nos Estados Unidos. No filme Confiar, Annie tem 14 anos e ganha de presente de aniversário um MacBook – e, junto com ele, o acesso a todas as redes sociais disponíveis na internet. Um dia, a menina resolve entrar em uma sala de bate-papo, onde acaba, como Aurora, conhecendo o seu prínpe: Charlie. Annie e Charlie iniciam um relacionamento virtual e mesmo após as pequenas mentiras que a jovem vai descobrindo sobre a sua nova paixão (como a idade, por exemplo), as conversam não acabam e finalmente chega o momento em que Annie e Charlie vão se conhecer pessoalmente.

Cartaz de Confiar em português / Foto: Reprodução

E é aí que vem a grande surpresa: a jovem descobre que, na verdade, o seu grande amor é um homem de 40 anos, e, como Aurora, cai em um sono profundo de um século. Adormece porque, de tão decepcionada, traída, e humilhada, Annie entra em um estado de negação tão irreprimível que passa achar que não foi estuprada, mesmo sabendo que ser obrigada a fazer sexo com alguém que não queira é estupro. Adormece porque não consegue lidar com o próprio medo de ter se envolvido e acreditado em alguém que durante todo o tempo mentiu e manipulou todas as informações possíveis – e acreditou em tudo. Adormece porque sente vergonha. Adormece porque já havia contado a todos os amigos como um jovem universitário de 19 anos estava apaixonado por ela, uma menina que mora em uma região suburbana de Chicago e tem apenas 14 anos de idade. Adormece porque não consegue lidar com toda a pressão psicológica que um estupro pode causar a uma mulher, e também porque não sabe conviver com o desespero de seus pais. Annie, como Aurora, adormeceu em uma Síndrome de Estocolmo (Transtorno em que a vítima cria uma relação de dependência com seu agressor) e não percebeu que dormiu. Annie é a Bela Adormecida do século XXI. Annie é a Bela Adormecida que dormiu em uma conversa de bate-papo e não conseguiu acordar depois de uma cena de estupro. Annie e Aurora são uma só.

A história continua quando uma amiga da protagonista descobre o acontecido e, indo de encontro a vontade de Annie, conta o caso aos pais da menina até que o caso vai parar na FBI. Durante a investigação, é descoberto que o estuprador de Annie já havia cometido o mesmo crime diversas vezes, todos com meninas com o mesmo biotipo e idade aproximada, e, além desses elementos, todas as ações tinham um fator essencial em comum: começaram na internet.

Trailer oficial de Confiar

Os crimes na internet (ou cibercrimes) foram ganhando cada vez mais espaço com o aumento do acesso das pessoas às redes sociais. Por conta da rapidez da propagação de conteúdos e com a possibilidade escrever qualquer coisa sobre qualquer assunto e disponibilizar para qualquer um que tenha o interesse de ler, a exposição torna o acesso a informações e dados bem mais fácil. A situação piora um pouco com a possibilidade de compartilhar fotos pessoais e o local onde mora, família, e momentos íntimos.

Mas, também não devemos enxergar a situação de maneira apocalíptica e nem ter medo de usar a rede ou compartilhar ideias e imagens com os amigos, mas, é importante se ter a noção de que, na verdade, não existem crimes virtuais e crimes “reais”: o que há são crimes que começam a partir de informações coletadas na internet. Essa é a grande diferença de Aurora e Annie – a segunda foi descoberta pelo seu agressor a partir do meio virtual.

Juntamente com o crescimento dos crimes virtuais, surgem também as leis que os condenam e os sites e números que os denunciam. O Safernet, por exemplo, é um site em que, além de poder procurar auxílio psicológico, uma pessoa pode denunciar qualquer tipo de crime que esteja relacionado com a internet. O delegado Guilherme Iusten, da Seção de Combate a Roubos a Bancos (Serb) que trata também de crimes contra direitos autorais e crimes de internet comentou em entrevista ao G1 que “não temos números exatos e oficiais que comprovam o crescimento das denúncias, mas como estamos na ativa diariamente, podemos afirmar que tem aumentando significativamente quando comparado ao ano passado. As pessoas estão mais informadas e procurando os direitos, atribuo isso também à internet”.

Hoje, crimes que começam na internet já são considerados crimes federais. Em 2012 foi criada a Lei Carolina Dieckmann, que marcou o início das penalidades para quem comete crimes cibernéticos no Brasil, em referência a atriz que teve fotos íntimas descobertas e espalhadas na rede. A nova lei entende como crimes virtuais os casos em que há invasão de computadores, celulares ou tablets, mesmo sem conexão com a internet, com o objetivo de destruir, obter ou adulterar dados.

Carolina Dieckmann, atriz brasileira que deu nome a lei que pune crimes virtuais / Foto: Reprodução

Os crimes virtuais que geralmente ganham mais notoriedade são aqueles que envolvem pessoas famosas em momentos íntimos. Neste ano ficou famoso o caso da atriz estadunidense Jennifer Lawrence, que teve fotos íntimas “vazadas” para a internet mais de uma vez. A atriz chegou a declarar que quem compartilhou as imagens estão também cometendo um crime sexual e virtual – o que não deixa de ser verdade.

Essa obsessão geral em ver e compartilhar imagens de celebridades em situações de constrangimento, além de ser milenar – afinal, a fofoca nasceu com o ser humano – pode ser explicada pela ideia de Sociedade da Vigilância: em que, a partir dos aparatos tecnológicos e da facilidade de comunicação, eu vigio você, você me vigia, e nós vigiamos todos. Na Sociedade do Espetáculo, termo e conceito propostos pelo filósofo francês Guy Debord, em que a imagem é a grande rainha e nós somos seus mais fiéis súditos, quem não se divulga chega a ser visto como um ser sem vida social, sem amigos, e, por fim, basicamente inexistente. O Espetáculo exige a espetacularização de fatos, e até comer pode se tornar uma atração. Mas, novamente, é importante reiterar que não se deve levar isso como algo negativo ou pensar que antes das tecnologias os seres humanos eram melhores: o que existe hoje é apenas uma nova forma de vida, nem melhor nem pior, e sim diferente. Diferente no aspecto de que, atualmente, a espetacularização se tornou mais fácil com as tecnologias de comunicação, e, antigamente, espalhar notícias próprias era um pouco mais difícil – apenas por carta ou pela oralidade. Provavelmente, se nossos avós tivessem tido acesso a todos esses aparatos, hoje nos entenderiam melhor e julgariam menos.

Os reality shows são uma das maiores formas de expressão da Sociedade do Espetáculo: há realities de culinária, música e moda, mas os mais famosos e adorados pela população são aqueles que envolvem celebridades, como o Big Brother, A Fazenda, Casa dos Artistas, entre outros, só para citar os mais assistidos no Brasil.

Pedro Bial, jornalista brasileiro e apresentador do reality Big Brother Brasil, o mais assistido no país / Foto: Reprodução

Uma serie de ficção recente trouxe esse tema, mas levado ao extremo: a trilogia de livros (que estão sendo adaptados para o cinema) Jogos Vorazes narra um mundo distópico em que uma Capital, poderosa e rica, tem o domínio e exploração sobre 12 distritos sem autonomia. Em Jogos Vorazes, o dito 4º poder é, na verdade, o 1º, já que a maior força do governo da Capital está na mídia e nas imagens. E, para controlar e governar essa sociedade excessivamente imagética, os governantes criaram os Jogos Vorazes, um reality show em que jovens com idades de 12 a 18 anos são mandados para a arena, que funciona como o estúdio do programa, onde precisam lutar até que todos morram e apenas o vencedor sobreviva. Só um fica, só um sobrevive, e só um ganha os Jogos Vorazes, sem direito a prêmios de segundo e terceiro lugar. A filosofia de vida da Sociedade do Espetáculo é tão visível na história ao ponto em que, mesmo sabendo que estão condenados à morte, os jovens que participam dos jogos fazem questão de estar sempre bem vestidos, arrumados e fotogênicos: e, como no Big Brother Brasil, os bonitinhos e atraentes são sempre mais queridos, pelo menos inicialmente – e o regojizo da sociedade em ver aqueles bonequinhos-de-luxo se assassinando até o fim (das vidas de cada um) mantém a Capital feliz, empolgada e abastecida. O fim da vida de várias pessoas é o que alimenta a vida de muitas outras. E isso não está tão distante da nossa realidade atual.

Trailer oficial de Jogos Vorazes

Afinal de contas, de que viveriam os jornais sensacionalistas, que exploram a morte, violência, e miséria de populações carentes, e, por isso, conseguem um público e audiência sempre estarrecedoramente grandes? Qual é a grande diferença entre os reality shows atuais e os Jogos Vorazes? Geralmente, quanto mais conflitos acontecem entre os participantes dos programas, maior é a sua audiência. O interesse humano pelas tragédias, na verdade, vem da antiguidade, e um grande exemplo é o Coliseu e as suas épicas batalhas. A Sociedade do Espetáculo foi ontem, é agora, e será amanhã. Viver no espetáculo é quase um instinto humano.

Aurora, 1636, e principalmente Annie, 2010, foram influenciadas por esse modo de vida: a primeira foi viver com o seu algoz para esconder as marcas do estupro e por não ser socialmente aceita na sociedade (do Espetáculo) por ser mãe solteira de filhos gêmeos, e a segunda se afastou de todo o seu círculo social por ter sido julgada e discriminada por ter se envolvido em um caso de estupro. A cada dia, novas Auroras e Annies surgem em algum lugar do mundo: sex tapes, fotos íntimas e conteúdos são espalhados por aí e o mundo se retroalimenta. Nós sobrevivemos.

O espetáculo é preciso, e, mesmo sem notar, todos fazemos parte do show. Pode-se ficar na plateia e comentar, fotografar e compartilhar imagens do acontecimento. Um passo a mais, e se pode chegar ao palco.

*Texto: Bruna Castelo Branco
Revisão: Grupo 01

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